Desencontros são regras que estão vivos em todos os cronogramas de aula.
O tempo não é justo e as dores não usam a função soneca, nem se atrasam depois
do último sinal.
Acreditar em um sonho, vivê-lo e não realizá-lo é pior que sua
permanência apenas no campo das idéias, já que quando ele chega o momento tão
esperado já se transformou totalmente – e essas instruções também estão em
anexo no plano de ensino.
As escolas mudam, trocam de nomes, e agora a minha se chama faculdade. Vários aspectos diferenciam
os alunos nesse espaço, uma das principais são os títulos, e estes denominam
alguns mais sábios que outros, diferentemente de outros tempos que todos eram
bem parecidos no tamanho, nas dúvidas e na indisciplina. Nesse tempo
apoiávamos-nos em mesas baixinhas e as cadeiras acompanhavam o nosso
crescimento: todos apoiavam os pés no chão. Havia alguns colegas que eram mais
gordinhos ou cresceram demais e então a cadeira ficava pequena e a solução era
uma de pernas mais longas que ficava no canto da sala de aula; esta, que
acomodava os grandões, não era colorida como as outras e as carteiras também
não, lembrando que não havia carteiras de pernas longas, apenas cadeiras. Era
muito difícil alguém querer sentar nelas, pois onde deveriam colocar as pernas?
Era melhor espremer-se nas cadeirinhas.
Eu, pequenina, sempre tive medo daquela cadeira alta, não porque ela deixava
de lado o azul-céu com margaridas de miolo vermelho - como a que eu adotei aos
6 anos -, mas porque um dia chegaria a hora de sentar naquela cadeirona marrom de pernas verdes, e disso ninguém
poderia escapar. Salvo alguns casos daqueles que foram para escolas que as
cadeiras continuavam coloridas, só que agora decoradas com letras, sorvetes,
lápis e tantos outros desenhos minimamente detalhados que minha imaginação
permitir, e nessas escolas também se usava uniforme.
Sim, uniformes! O meu era um short-saia azul marinho com camiseta, meia e
tênis brancos, nas escolas diferentes também havia os shorts-saia, mas além da
camiseta de algodão tinha meia soquete personalizada e os pais não colocavam
nome nos lápis.
Às vésperas do meu primeiro dia de ida para escola estava ansiosa para
estrear a nova mochila e o caderno encampado impecavelmente com papel pardo,
etiqueta com o nome e um plástico que só as mães são capazes de dominar. Na
noite anterior as meias e uniforme comprados há semanas estavam passados e aguardavam
a manhã que se aproximava e confesso que foi a noite menos dormida em 18 anos –
nossa! Dezoito. E minha mãe me disse que um dia eu me lembraria daquele dia com
saudade. Acho que esse dia chegou.
Entre os irmãos eu fui a última a estrear aquele uniforme e, talvez, por
essa razão minha mãe não se comoveu com o meu olhar desesperado e nó na
garganta que senti ao vê-la ir embora por entre as grades da cerca de arame
farpado da escola. Estava feito! Eu estava onde sempre tive vontade de estar:
entre crianças que não sabiam cantar as musiquinhas que a tia da pré-escola
ensinaria – e eu sabia todas, afinal três irmãos cantam muito.
Os anos passaram e as cadeiras – aquelas coloridas, não só as com
margaridas de miolo vermelho, mas as que tinham os adesivos de pic-nic –
mudaram de cor e tamanho. Lembra quando eu tinha medo de sentar naquela cadeira
marrom porque deixaria a minha azul que permitiam meus pés tocarem o chão? Pois
bem, chegou o dia que eu a enfrentaria. Me preparei para uma batalha: uma nova escola,
uma nova cadeira! Olhei para ela duas vezes antes de apoiar a minha mochila em
seu encosto e começar a pegar o caderno, ela me olhava como se me conhecesse há
anos e para mim era cada vez mais estranha. Depois de alguns momentos, talvez
horas, que passamos nos olhando eu consegui – ou ela conseguiu me vencer – e lá
estava eu sobre ela. Com as mãos que mal conseguiam alcançar a mesa que estava
da altura do meu queixo eu tentava me ajeitar naquela cadeira enorme, mas era
em vão e meus pés não alcançariam o chão ao menos pelos próximos 3 ou 4 anos.
Para minha infelicidade maior escolhi a cadeira na primeira fileira e essa
disposição era perfeita para que todos vissem o quão miúdas eram as minhas
pernas.
Alguns anos depois minhas pernas conseguiram alcançar o chão, mas aí a
minha meta já era outra: a formatura! Como seria o banco do cinema – onde a
formatura aconteceria – será que eu conseguiria apoiar os pés no chão? Para a
minha infelicidade não consegui por apenas alguns centímetros.
Quando as cadeiras deixaram de ser marrom e verde, passaram a ser bege e
azul. Bem diferente do azul-céu de fundo das margaridas com miolos vermelhos,
mas o azul sempre me agradou mais, porém essas cadeiras beges e azuis eram
ainda maiores que as outras. Ah! Vai começar tudo outra vez? Não! Dessa vez fiz
diferente, sentei no fundo da sala e experimentei, deu certo. Apesar de tocar
apenas a ponta do tênis no chão eu já estava feliz, ou menos preocupada.
O tempo, aquele que não é justo, passou mais um pouco e eu precisava
enfrentar mais uma batalha. Acho que essa última, e atual, foi menos dolorosa
porque aprendi a deixar o relógio atrasado para que ele não alcance o meu
tempo. Funcionou! E os meus pés alcançaram o chão com facilidade e, dessa vez,
elas eram bege e preto e totalmente diferente das outras. Desconfortáveis e
feias, mal cabem o caderno e um estojo, se eu ainda tivesse aquele que meu
irmão fez na aula de marcenaria seria impossível não derrubá-lo com os
movimentos do caderno. Pior ainda são os dias de provas, aqueles que te deixam
inseguro o dia todo e quando você se senta naquela cadeira parece que ela
diminui, mas não ficam mais próximas do chão apenas apertam.
Esse sonho é vivido há dezesseis anos. As minhas pernas continuam não
alcançando o chão prescrito, meu queixo ainda dói quando descanso a cabeça
sobre a carteira... Queria que as cadeiras fossem todas iguais, assim só
haveria preocupação uma vez e quando a gente crescesse bastante e os pés
ficassem bem apoiados no chão aumentariam alguns poucos centímetros as pernas
da cadeira, ou ainda cada um trouxesse a sua cadeira de casa para que as
canelas não doessem de tanto se esticarem.
Agora, na faculdade, a minha cadeira ainda é grande para mim. Quando as
responsabilidades e as penas crescem, é hora de contornar com canetinha preta o
campo que vive um adulto trabalhador inserido no ensino superior no Brasil.
Nesse espaço, embora os pés fiquem bem apoiados no chão, as angústias do
repensar esta realidade culminam ao passo que o massacre acontece. Massacre e
massificação do saber que as cadeiras fazem desde o primeiro dia numa escola, e
anterior a elas. Tudo o que eu mais queria é que a minha cadeira fosse
reconhecida e o padrão bege e preto deixasse de pintar de tons pastéis as
minhas noites.