quarta-feira, 10 de junho de 2020

Maria

O ano era 1936. No Brasil Getúlio Vargas e o Estado Novo caminhavam à todo vapor, na Europa os estados autoritários de governo se fortaleciam dia após dia com Hitler na Alemanha, Stalin na Rússia/União Soviética, Mussolini na Itália; enquanto as américas ainda sentiam as consequenciais da crise econômica de 29 nos Estados Unidos; a moda passava por um período muito criativo e revolucionário que retomava a valorização do corpo feminino. Entretanto, aqui, estamos contextualizados no interior do estado de Minas Gerais, onde as grandes fazendas de café continuam a sustentar-se com mão de obra negra e imigrantes de diversos países da Europa e os vestidos de seda com cintura marcada eram vistos apenas em revistas e jornais nas capitais. São apenas 48 anos após a Lei Áurea e cultura escravagista persistia fortemente.
Em uma quinta-feira, dia 20, nascia Maria. Simplesmente Maria. Um dos nomes mais populares no país foi dado a uma menina. Negra, filha de pais marcados pelas cicatrizes do escravagismo que tiveram uma passagem curta na vida de Maria. Aos dois anos de idade seu pai falecia e quatro anos depois sua mãe não estaria mais presente em sua vida, quando emerge sua Tia cuidadora e apoiadora de uma menina órfã com 6 anos de idade.
Maria cresceu, forte e resiliente. Superou a ausência de seus pais e a difícil convivência em família. Casou-se aos 19 anos, no ano de 1945 quando a Segunda Guerra Mundial se iniciava com a Alemanha invadindo a Polônia, mas Maria não sabia disso. No sítio não havia rádio para comunicar esse histórico acontecimento. Ela também não sabia sobre a bomba atômica de Hiroshima e Nagasaki; ela estava cuidado de sua casa e de seu casamento que, mesmo sem o amor idealizado, persistia. Os filhos vieram, foram 7 no total, infelizmente dois faleceram ainda pequenos. Sim, Maria lidou com a dor da perda de filhos, chorou, se desesperou, e levantou a cabeça para mais um dia de trabalho como lavadeira e cuidou impecavelmente de sua casa.
Maria também não soube que Brasília havia sido inaugurada, mas a notícia da Guerra do Vietnã trouxe medo e aflição à toda vizinhança. O golpe Militar de 19364 também não foi noticiado, bem como a chegada do homem à lua. Assuntos políticos estavam longe da realidade de Maria, sua preocupação diária era a incerteza que seus filhos teriam que dormir com a barriga vazia. Mas ela era forte e corajosa, não desistiu de sua luta e, mesmo após o abandono de seu marido, seguiu em frente com sua vida e garantiu a sofrida e digna criação de 5 filhos. Uma mulher, sozinha, sem saber ler, sem apoio, com a responsabilidade e desafio de uma maternidade solitária para os filhos, e a necessidade de por comida na mesa todos os dias. Era a vida de Maria trabalhando nas fazendas durante sua meia idade. Suas filhas cresceram e seguiram o mesmo caminho, na roça. Porém elas estudaram e escolheram seus maridos por amor, não mais uma convivência conveniente pelas circunstâncias.
Maria não estava nas Diretas Já, ou viu o Muro de Berlim ser derrubado, também não entendia o fim da União Soviética, ou entendeu a complicada situação de conflito e guerras no Oriente Médio, mas Maria venceu sua batalha! Matriarca de uma família de mulheres fortes e corajosas, dona de uma receita de doce de mamão verde que eu nunca seria capaz de reproduzir, ela testemunhou seus filhos seguindo os caminhos escolhidos, teve a oportunidade de conhecer seu trineto (filho de sua bisneta), viu seus frutos crescerem e florescerem para o novo, o inesperado e um futuro cheio de possibilidades.
Dona Mariinha continua com seu lenço na cabeça, a relutância costumeira e com a saúde
debilitada. Ela sempre fala em descansar dessa vida de sofrimento e dores e isso faz a família sofre junto com ela. De certa maneira a minha vó continua sendo o alicerce da família com sua forca e resiliência.
Hoje, orgulhosamente, reconheço o seu poder e força de mudança e seu amor pouco dito e muito
demostrado.
A vó vai embora em breve, mas o legado dela vai ficar aqui dentro de cada um de nós.